Comentário e apreciação da peça Cavernas,
escrita e encenada por Bruno Amarante,
apresentada ao público em 16/07/2010,
na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Braga
A peça Cavernas expõe uma série de monólogos de cinco irmãos traumatizados em relação a um ente superior, que ora parece personificar-se numa alusão a Deus ora a uma alusão a um pai real e biologicamente existente. De qualquer forma, a intersecção entre estes dois planos parece remeter para uma ausência de distinção entre os mesmos: as diferentes personagens evocam para si, durante momentos de confissão e revolta, um julgamento de maus-tratos para com algo, o qual não parece precisar de ser objectivamente identificado. Assim, não interessa tanto o objecto da revolta mas antes o facto de essa mesma revolta ser constante no espaço cénico onde as personagens se movimentam.
Daqui rapidamente se infere, como de resto a representação o exprimiu, que o princípio, seja ele o princípio teológico que exige resignação ou um princípio físico e humano que exige uma violentação dos jovens, está ausente na peça, e é em torno dessa ausência, que se torna sempre presente pela revisitação traumática das personagens, que os irmãos se encontram unidos e mantêm a memória uns dos outros.
De facto, o diálogo nesta peça é periférico e quase acessório, precisamente porque esse diálogo é desnecessário: por um lado o drama de cada um deles é no fundo o mesmo; por outro, é através do monólogo que se exprime uma solidão geral, uma falta de carinho que, não vindo de um Pai, não vem dos irmãos.
No entanto, assim sendo, porquê cinco monólogos relacionáveis e não uma só personagem, um só discurso? Porquê Cavernas e não Caverna? A multiplicidade de personagens, que poderíamos considerar egos fragmentos de um eu que foi destruído, é no entanto essencial no texto. Uma vez que cada um dos traumas é igual aos demais, fruto de uma experiência comum (os maus-tratos por parte do pai e/ou a repressão de um Deus), seria de supor que a exposição desse sofrimento cairia sempre na redundância. Por outras palavras, não haveria movimentação na peça, e uma fala do início tanto poderia surgir no início como no fim. No entanto não é isso que acontece: a peça tem um movimento interior, uma progressiva diminuição da revolta para uma resignação elucidada. Essa movimentação, que para mim é o mais revelador e interessante, é feita precisamente com base na noção de comunidade.
Nas primeiras falas da peça, dá-se uma constante revisitação do trauma, que expõe uma solidão (a solidão humana) perante a qual não se tem respostas. Esta solidão exigiria no entanto sacrifício pessoal, uma submissão completa dos instintos interiores. Mas liberta-se nesse grande grito de revolta que marca desde o início oespectador.
No entanto, há a necessidade de colmatar essa lacuna, porque se cada um dos irmãos grita por uma libertação, é porque tem consciência da sua sina. O espaço que cada um deles ocupa é de conhecimento, não mais de ignorância: conhecem precisamente essa ausência como origem e desamparo, e não mais aceitarão nos mesmos modos o que anteriormente lhes foi imposto.
Não poderão libertar-se completamente, coisa que implicaria ser como o pai malévolo que não querem servir nem ser. Assim, o drama evolui para uma calma resignada e dorida, onde um dos irmãos acaba por exortar os restantes a serem livres “às ocultas”, fugidos da solidão avassaladora e, quando esta vier, continuar, pois eles já têm conhecimento da sua sina, e já poderão achar prazer numa forma de libertação que é uma resignação auto-suficiente. As personagens adaptam o seu ego a uma às suas próprias limitações, e assim nos deixam para seguir a vida.
André Antunes,
Escrito em 19/07/2010